OU O PORTO DO FILHO DE HÉRCULES
«… porque estando (…) metidos ao mar huns escabrosos penhascos, a que chama Leixoens o vulgo; por mais que as tempestades embravecidas ostentem nelles com encapellada inchação e horrorosos deliquios, nunca nelles se vio haver naufragio, antes sim seguro asylo a toda a embarcação, que de proposito encaminha o rumo a este surgidouro admiravel, para salvar-se de todo, o que de outra sorte seria infallivel estrago, e notorio perigo, conseguindo deste modo bonança na mais furiosa tormenta.»
António Cerqueira Pinto, História da Prodigiosa Image..., 1737
Quis Deus ou a Natureza que na foz do rio Leça, a meio quarto de légua da costa, se elevasse das águas atlânticas um conjunto de rochedos a que os homens deram o nome de «Leixões». Eram o «Espinheiro», a «Alagadiça», o «Leixão» grande e pequeno, como grande e pequeno eram também os rochedos da «Lada». Mas havia também o «Tringalé», o «Galinheiro», o «Cavalo de Leixão», a «Quilha», a «Baixa do Moço», o «Fuzilhão», o «Baixo do Leixão Velho» e muitos outros…
Desígnio divino, ou tão só caprichosos afloramentos graníticos, que os geólogos classificam de grão médio ou gnáissico, os Leixões descreviam um semí-circulo no mar, formando como que um porto de abrigo natural.
Numa costa frequentemente assolada por tempestades e nevoeiros, perigosos dada a existência de abundantes penedias traiçoeiras só visíveis nas vazantes, e que muito contribuíram para o sombrio e nefasto título de «Costa Negra» dado a esta região durante séculos, o refúgio formado naturalmente pela enseada dos Leixões não poderia deixar de escapar à atenção e argúcia dos Homens. E, com efeito, desde a mais recuada Antiguidade é a intervenção humana, mais do que a natural ou a do Criador, que moldará a história de Leixões. Mesmo que, para tal, muitas vezes tenham os mortais enfrentado as adversidades impostas pela natureza, e outras tantas tenham vencido o que pareceu ser a oposição do divino ou, quem sabe, a vontade do Demo.
Não bastavam já os Leixões, também o próprio rio Leça contribuía e reforçava o apelo ao abrigo. Deslizando suave, nesta etapa final da sua viagem, o rio desaguava num convidativo estuário, navegável para montante até uma distância considerável. Tais potencialidades eram já aproveitadas no 1º milénio A.C. quando, muito próximo da sua embocadura, numa elevação da margem esquerda que hoje designamos por Monte Castêlo, surge um importante povoado da Idade do Ferro: o Castro de Guifões, habitado por Brácaros Galaicos. Na base do morro, junto ao rio, desenvolver-se-ia, seguramente, uma estrutura portuária, ainda que incipiente. Os achados arqueológicos recolhidos vêm atestando da chegada – por via marítima - de produtos originários de paragens longínquas.
Colonizado pelos romanos, a partir do século I A.C., o Castro de Guifões pertence agora, e insere-se com assinalável sucesso, no vasto espaço económico e comercial que é o Império Romano. Salvaguardadas pelos Leixões e conduzidas até à elevação onde se implantava este povoado através do rio Leça, as embarcações da época aqui fazem chegar produções agrícolas do sul da Península, conserva de peixe do estuário do Sado, cerâmicas e outras expressões da cultura material de Itália, sul de França, norte de África, oriente mediterrânico… Desta forma, a foz do Leça transformava-se , há já dois mil anos, num importante interface portuário e comercial da região, muito especialmente para os restantes povoados que se implantavam na bacia deste rio ou nas suas cercanias. E, desde então, ao longo da História, não mais a foz do Leça e o seu porto marítimo-fluvial deixaram de possuir tal importância. Por vezes a uma escala regional reduzida, muitas outras influenciando vastas áreas.
Entretanto o domínio romano resultara, igualmente, num povoamento mais disperso e contribuíra para uma maior aproximação das populações ao litoral marítimo e às margens fluviais. Neste contexto, ainda durante os primeiros séculos da nossa Era, iniciar-se-á a ocupação do espaço hoje coincidente com a cidade de Matosinhos-Leça. E se para esta última freguesia, implantada na margem direita da foz do rio Leça, uma vez mais a arqueologia revelou recentemente provas dessa ocupação tão remota, para o caso de Matosinhos, na margem esquerda, é a própria origem do topónimo que, segundo alguns investigadores, está decisivamente associada à época romana e à origem do porto. Vale a pena, de resto, perder alguns instantes para conhecer tal hipótese que, curiosamente, levará uma vez mais o leitor a deparar com uma relação que os homens quiseram estabelecer entre Leixões e o divino, neste caso alicerçada na mitologia romana.
Nos documentos mais antigos em que surge grafado o nome de Matosinhos, datados do século X e redigidos em latim, este aparece designado por Matesinus, topónimo que, por si só, é de difícil explicação ou significado.
Contudo, subdividindo a palavra surgem interessantes indícios explicativos da origem do topónimo. Com efeito sinus significava em latim, e muito particularmente para os romanos, recorte no litoral, côncavo na costa… porto de abrigo natural. Ou seja, algo que, como já analisamos, se adaptava perfeitamente à realidade geo-topográfica que os romanos aqui encontraram, devido à existência dos Leixões. De resto, o vasto mundo romano está repleto de topónimos que têm a referida designação sinus na sua origem ou como componente. Um outro exemplo elucidativo, em Portugal, é o de Sines.
Explicada a origem de metade da palavra, resta perceber o significado de Mate. Uma vez que os romanos tinham por hábito baptizar com o nome de divindades, imperadores, heróis ou figuras retiradas da mitologia as principais cidades, portos e outros locais de interesse geo-estratégico que fundavam ou conquistavam, é nesse campo que alguns estudiosos encontraram uma possível e, no mínimo, curiosa explicação (1). É que, com efeito, existe uma personagem mitológica, filho de Hércules, cuja designação – Amato – poderia facilmente estar na génese do actual topónimo. Matosinhos resultaria assim, como sabemos, de Matesinus e este, por sua vez, poderá derivar de Amato sinus: o porto de abrigo do filho de Hércules.
Porto de abrigo natural que, de facto, durante muitos séculos salvou milhares de vidas de marítimos, mareantes, passageiros e pescadores. Porque, como escrevia Marino Franzini, em 1812,
«talvez seja este o único ponto desta costa que oferece algum abrigo às embarcações acossadas pela travessia; e, em todo o caso, é a única paragem onde as equipagens podem ter esperanças de salvação quando seja inevitável encalhar. Os barcos de pilotos e pescadores quase sempre podem sair ao mar partindo deste ponto, quando pela ressaca é isso impraticável em outra qualquer paragem da costa.»
Mas, de porto de abrigo natural Leixões converter-se-á, no final do século XIX, numa gigantesca estrutura portuária artificial. Num dos mais dinâmicos locais onde a Europa encontra e abraça o Atlântico. Essa é, no entanto, outra história. A que de seguida procuraremos narrar, necessariamente de forma abreviada.
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"(…) Mapa he ademonstração da Costa do Mar desde a Villa de Matozinhos, athe a Barra da Cidade do Porto (…)" Por Jozé Gomes da Cruz, Piloto das Naus de Guerra. 1775 Cópia de 1906. Arquivo da APDL. |
Da vontade das gentes e da cegueira dos poderosos.
Ou a evidência da utilidadde de um porto artificial em Leixões.
« Em distancia de hum quarto de legoa a o mar, em direyto da boca do rio, está descoberta hua penha de grande e plana área, (…) dizem os engenheyros que se pode edificar hum cáys para ir a pé enxuto ao dito penhasco grande chamado Leyxoens edificar hua boa Fortaleza para defesa de hum surgidouro excelente de grande quantidade de Navios, muyto util para todo o tempo, muyto mais para o em que não podem entrar (n)a Barra do Porto, por seus continuos perigos. »
Pde. Luís Cardoso, Memórias Paroquiais, 1758
Estavam pois reunidas as condições naturais para que na foz do rio Leça, e aproveitando o abrigo formado pelos leixões, se construísse um porto artificial. A vontade das gentes é também evidente desde muito cedo. Mas não chega…
Edificar «hum cáys para ir a pé enxuto» desde a praia até aos leixões, definindo deste modo um seguro porto de abrigo artificial para uma «grande quantidade de navios», é um projecto de grande utilidade sonhado – prematuramente, dirão alguns – desde pelo menos o século XVI. Mas aquilo que para muitos é de uma evidência quase cristalina, para outros é total e radicalmente ignorado. Tal cegueira iremos encontrar entre os poderosos e aqueles que, afinal, paradoxalmente mais lucrariam com a construção de tal empresa: a burguesia mercantil, e posteriormente industrial, da cidade do Porto.
Embora os pedidos e projectos para transformar o porto de abrigo natural numa estrutura portuária comecem a tornar-se sistemáticos a partir do reinado de D. João V, já antes encontramos algumas referências, como é o caso de um estudo da autoria de Simão de Ruão, datado de 1567(2). Mas é, de facto, desde a segunda metade do século XVIII que os planos se multiplicam. Caso dos de Salazar em 1779, Oudinot em 1789, Gomes de Carvalho em 1816, Alves de Sousa em 1840, ou de Damásio em 1844.
Porém já não era só a evidência da possibilidade e da utilidade que motivava estes estudos. Já não eram os leixões, só por si, que estimulavam tais ideias. Um outro factor, localizado cinco quilómetros mais a sul, ia tendo cada vez mais peso: o poder ser uma alternativa, um abrigo, para os navios, cada vez em maior número, que em determinadas alturas do ano «não podem entrar (n)a Barra do Porto, por seus continuos perigos.»
Merece, de resto, uma referência especial o «Mapa (...) ademonstração da Costa do Mar desde a Villa de Matozinhos, athe a Barra da Cidade do Porto» de Jozé Gomes da Cruz, Piloto de Naus de Guerra, datado de 1775 e que defendia o seguinte projecto:
« (…) defronte da dita villa (Matosinhos) se reprezenta a grande pedra de Leixões, que pode servir para asento de hum castello, à sombra do qual tenhão abrigo os navios que não poderem entrar na Barra da dita Cidade do Porto, também se pode entulhar pela parte do Norte com Navios velhos carregados de pedra, hum espasso que ha entre a dita pedra e outras que lhe ficão pela parte do Norte (…) desta obra rezultará no tempo de Guerra escuzarem de hir os Navios recolher-se a Galiza e lá fiquarem prizioneiros, ou perderem-se hindos corridos com temporal (…) ficarão os navios assim abrigados dos ventos Sues, Oestes, Noroestes e Nortes, e não lhe poderão fazer muito danno os mais ventos (…) ».
Com efeito, desde sempre a foz do rio Douro foi um obstáculo particularmente penoso para as embarcações que, penetrando através da sua barra, procuravam alcançar, a montante, os diversos cais do porto do Douro, os mais importantes dos quais implantados na margem direita, junto às zonas ribeirinhas e históricas da cidade do Porto, como era o caso do cais da Ribeira, do Bicalho, do Ouro, da Cantareira …
Uma entrada perigosa, repleta de inúmeros e inesperados penedos, emergentes uns, encobertos outros, provocava repetidos e trágicos naufrágios. Uma simples análise à «Planta Geográfica da Barra do Porto» incluída na obra Descripção topographica e historica da cidade do Porto, da autoria de Agostinho Rebello da Costa, datada de 1789, é bastante elucidativa a este respeito. Por outro lado, o facto do Douro ser um rio de grandes e cíclicas cheias, que impediam a sua navegabilidade durante largos períodos, associado à circunstância de, em contrapartida, a barra se mostrar muitas das vezes bastante assoreada nas épocas restantes, concorria para que o Douro fosse, efectivamente, um porto de grandes perigos e dificuldades para o trânsito marítimo. Tanto maiores quanto se ia registando, igualmente, um progressivo aumento do calado dos navios. Desta situação incomportável, em particular para a navegação comercial, eloquentemente faz eco o relatório de John Rennie, datado de 14 de Junho de 1855, referindo
« os perigos existentes e as perdas de vidas que tinha havido, bem como os prejuízos que tinha sofrido o comércio pela dificuldade na entrada da barra, que no inverno e no começo da primavera estava fechada às vezes por semanas e meses seguidos, tendo-se dado casos de um navio fazer viagem de ida e volta ao Brasil, enquanto outro esperava fora da barra que se lhe oferecesse ensejo de entrar no porto. No próprio verão, o mar às vezes não deixava comunicar os navios com o interior do porto » (3).
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"Planta Geográfica da Barra da Cidade do Porto", in Agostinho Rebello da Costa, Descripção topographica e histórica da cidade do Porto, 1789. Arquivo da APDL. |
Estariam agora finalmente reunidas as condições naturais, os desígnios divinos e a vontade dos Homens para avançar com a construção de um porto artificial apoiado nos leixões? Tudo levaria a crer que sim. Mas não foi assim tão fácil. Que o demo ou – se quiserem numa leitura mais historiográfica – o contexto sócio-económico de então, ainda colocou muitos entraves ao longo da segunda metade do século XIX.
Não era fácil, particularmente à burguesia portuense, abdicar do porto do Douro. Durante séculos a cidade habituara-se a desenvolver a sua actividade comercial de uma forma particularmente privilegiada, quase cúmplice, com o rio. A cidade crescera mesmo em íntima relação com este curso de água. É nas suas zonas ribeirinhas que encontramos as principais estruturas económico-comerciais da cidade. E tal é válido para todo o século de Oitocentos. A bolsa, a alfândega, a feitoria inglesa, as sedes e armazéns das principais empresas comerciais do burgo… E, na segunda metade do século XIX, em nítida articulação com os cais fluviais, é também a fixação industrial que vai moldar e estreitar uma vez mais a ligação da cidade com o seu rio.
Neste contexto, seria possível à burguesia do Porto de então aceitar, de uma forma pacífica, a transferência do seu mundo comercial e portuário do Douro para Leixões? A resposta foi a de um retundante não. Um não materializado numa total surdez e cegueira em relação às propostas que apontavam Leixões como uma alternativa segura ao Douro. Um não que, para lá das razões fundadas nos laços históricos e afectivos que esta comunidade possuía com o rio, teve em conta muito mais o imediatismo, e muito pouco a perspectiva de futuro. É que, como facilmente se compreenderá, à burguesia comercial e industrial da cidade não era nada aliciante, do ponto de vista económico e numa perspectiva de curto prazo, ter que desmantelar, transferir ou adaptar os seus armazéns, fábricas e outras estruturas ribeirinhas. Mesmo intuindo que a médio/longo prazo a opção por Leixões seria seguramente mais rentável.
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"Perspectiva das margens do Rio Douro subindo-se para a Cidade do Porto." S/d (1ª metade do séc. XIX). Arquivo da APDL. |
E, subscrevendo a opinião do poder económico (ou, pelo menos, de importantes e influentes sectores comerciais portuenses), também o poder político irá ignorar os espíritos iluminados que viam a solução na construção de um porto alternativo na foz do rio Leça.
E assim, a teimosia dos homens prevaleceu mais do que seria compreensível. Para obstar aos constantes naufrágios e às demoradas esperas para se poder atravessar a barra, foram-se tomando medidas que, embora desesperadas e simultaneamente imbuídas da mais pura das esperanças na resolução do problema de uma segura navegabilidade do velho porto comercial do Douro, não passaram nunca de paliativos. Salientaram-se, contudo, algumas intervenções na foz que chegaram até aos nossos dias. Caso do dique a jusante da Cantareira, incluindo a «Meia Laranja», segundo projecto do Engenheiro Oudinout, construído entre 1792 e 1805, e um outro dique de 600 metros, na extremidade norte do Cabedelo, hoje designado por molhe Luiz Gomes de Carvalho, personalidade que dirigiu a sua construção entre 1820 e 1825.
Mas obras e projectos houve muitos desde os finais do século XVIII. Em 1790, por iniciativa da Real Companhia Velha, é iniciada a construção, junto à Arrábida, da estrada marginal que ligará o Porto à Foz-do-Douro e que permitirá, nos anos seguintes, o aparecimento e a sua ligação também por via terrestre de novos e melhores cais, como o da Arrábida, Cantareira, Monchique, Massarelos e a própria Ribeira.
Mas não eram os novos cais, e uma melhor acessibilidade a estes por terra, que iriam resolver o problema da navegação. Os perigos da barra do Douro mantinham-se e os acidentes sucediam-se. E é na sequência de um trágico naufrágio, ocorrido no dia 29 de Março de 1852 com o vapor «Porto», arremessado pelo mar alteroso para as pedras da Forcada, em frente ao Castelo de S. João da Foz, e no qual morreram 66 pessoas, que finalmente as autoridades se empenham na procura de uma solução. Uma procura que, desde logo, se continua a centrar, ainda, no rio Douro. Contudo, paulatinamente, Leixões ia emergindo e assumindo-se como a resposta óbvia…
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Planta dos Melhoramentos do Porto Commercial do Douro- Margem Direita desde a Ponte Luiz 1º até Massarelos. 1887. Cópia de 1890. Arquivo da APDL |
Poucos dias depois do naufrágio do «Porto» o Governo nomeia uma comissão, encabeçada pelo Engenheiro Belchior Garcez para propor o que se julgasse conveniente para aumentar a segurança do Douro. Era apenas o início. Muitos outros projectos, estudos de correntes, avaliação das cheias, propostas e efectivas destruições de penedias e quebramento de rochas, construção de novos cais, molhes e enrocamentos de margens, se seguiram nas décadas posteriores, da responsabilidade de tantas outras comissões ou de engenheiros, muitos dos quais estrangeiros, especialmente contratados para tal objectivo. Seria imensa a lista e a paciência do leitor esgotar-se-ia. Teimosamente deixem-nos, no entanto, relembrar alguns:
1854 – o engenheiro francês Gayffier propõe um cais do Passeio Alegre até aos penedos das Felgueiras;
1854 – é contratado o engenheiro londrino William Jates Freebody para vir examinar a barra do Douro e elaborar um relatório com soluções;
1855 – um outro inglês, o engenheiro hidráulico sir John Rennie, apresenta um relatório onde defende a destruição de uma série de rochedos;
1858 – o engenheiro inglês, Knox, apresenta um projecto que previa o aterro da foz do rio, abrindo-se no Cabedelo um canal com eclusa que desembocaria num porto de abrigo construído no mar e formado por molhes marítimos;
1859 – projectos do engenheiro Joaquim Nunes de Aguiar e do inspector de Obras Públicas José Carlos Chelmiki;
1859 a 1862 – pormenorizados estudos hidrográficos dirigidos pelo engenheiro Caetano Maria Batalha que conclui, igualmente, pela necessidade de destruição de inúmeros penedos, muitos dos quais até profundidades que deveriam atingir os seis metros;
1863 – o engenheiro francês, H. Luzeu, defende que a melhor solução é mudar a orientação da entrada do Douro, sugerindo para tal a construção de dois molhes curvilíneos a sair do Cabedelo e de S. João da Foz alterando, efectivamente, o rumo das águas do Douro no seu contacto com o mar. Mais um projecto, como tantos outros, que não passou do papel. O mesmo aconteceria com os de Léo de La Peyrouse e Robert Messer, ambos de 1865.
Concludentes foram, no entanto, os estudos dirigidos pelo engenheiro Afonso Joaquim Nogueira Soares de 1869 a 1871. As suas propostas, aprovadas pelo Governo de 1873, embora com sucessivas modificações e melhoramentos, foram efectivamente implantadas em trabalhos que dirigiu até 1892. Data deste período, entre outros, a construção do molhe norte da Foz do Douro, o enrocamento da praia das Argolas, o aterro do Passeio Alegre, o varadouro da Cantareira, o molhe de Carreiros, o molhe das Felgueiras ou do Farolim…
Mas, por esta altura, o leitor já estará cheio de datas, nomes e projectos. E a pergunta, adivinhamos, está no seu pensamento: Sim… mas Leixões?
Neste grande conjunto de estudos e projectos, desde cedo Leixões e a foz do rio Leça surgem como a alternativa ideal para o velho porto comercial do Douro. Disso não têm dúvidas alguns dos mais eminentes engenheiros estrangeiros a quem o governo solicitara opinião. Embora autor do projecto já referido, da construção de dois molhes na foz do Douro que permitisse uma mudança de orientação das águas do rio na sua desembocadura, o francês Luzeu defende claramente a alternativa da construção de um novo porto. Quem não se limitou a defender tal hipótese, avançando mesmo com projectos, foram os também já aqui referidos ingleses Freebody e Rennie, ambos em 1855.
Assim, apesar de sucessivamente adiado e dos interesses que se jogavam contra a sua efectiva materialização, ia ganhando pois espaço e adeptos a ideia de um porto em Leixões. Muito mais quando, dez anos depois, datado de 17 de Março de 1865, um novo projecto, da autoria do engenheiro Manuel Afonso Espregueira, que previa a construção de dois molhes enraizados na praia, consegue reunir os consensos necessários para obter, três anos depois, o parecer favorável do Conselho das Obras Públicas.
Mas seria necessário esperar ainda mais alguns anos. Tempo para o engenheiro inglês James Abernethy produzir dois planos e para fazer aparecer em cena as duas personagens que, tecnicamente, iriam produzir em definitivo o projecto do Porto de Leixões: o inglês Sir John Coode e o já nosso conhecido Afonso Joaquim Nogueira Soares – o engenheiro que vinha dirigindo os trabalhos na foz do Douro. É de facto com base nos projectos apresentados em 1878 por Nogueira Soares e em 1881 por Coode que, em 1883, o ministro das Obras Públicas, Hintze Ribeiro, apresenta na Câmara dos Deputados uma Proposta de Lei autorizando o Governo a adjudicar a construção do porto artificial de abrigo de Leixões. E, julgando-se convenientes algumas modificações é responsabilizado pela elaboração do projecto definitivo o engenheiro Nogueira Soares, que o dará por concluído no dia 24 de Agosto de 1883. Justo será salientar o nome de Adolpho Loureiro que, durante este período, faz parte de uma série de comissões que acompanham a elaboração do projecto final.
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Proposed Harbour at Leça, 1865 (Proposta de James Abernethy para um porto na foz do Leça) Arquivo da APDL |
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Porto de Leixões. Planta Geral e Perfis-typos segundo os diversos projectos que foram elaborados por differentes Engenheiros nacionaes e estrangeiros. Esc.1/2.500 (no original). S/d. Arquivo da APDL |
E assim, depois de muitas décadas de espera (séculos para os mais visionários), nesse mesmo ano de 1883 era aberto concurso internacional para a definitiva construção do Porto de Leixões. Base de licitação da obra – 4.500 contos de reis.
Os velhos do Restelo, que mais apropriado seria designar neste caso por velhos da Ribeira, estavam vencidos… mas não convencidos. A primeira batalha estava de facto ganha. Não a guerra. O Porto de Leixões ia começar a ser construído, porém apenas como «porto artificial de abrigo». Um local que, onde embora se pudesse admitir algum trabalho de carga e descarga, era assumido apenas como refúgio, ancoradouro seguro para as embarcações que aguardariam aí a melhor oportunidade para entrar na barra do Douro. Leixões ainda não era, na sua génese, um verdadeiro porto comercial alternativo ao do Douro.
E, quando a utilidade e potencialidade de Leixões eram por demais evidentes, tentaram ainda os conservadores defensores do Douro uma última, radical e desesperada solução: já que, com efeito, a embocadura do rio era perigosa mas o resto do seu curso ao longo dos cais portuenses não representava grandes dificuldades, e convencidos que se mostravam da segurança de Leixões, propuseram (e chegou-se a fazer estudos e projecto!) a construção de um canal que, atravessando Matosinhos e o que é hoje a orla marítima da cidade do Porto, conduziria as embarcações desde Leixões até ao Douro, evitando a sua barra. Projecto que, de resto, já havia sido equacionado em 1879 por James Abernethy. Não se chegou, obviamente, a concretizar…
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Porto de Leixões. Com canal para o rio Douro. George H. Hastings, 1879 Arquivo da APDL. |
O processo de construção do complexo portuário de Leixões está, de resto, repleto de utopias. Entre elas, e além do canal atrás referido, será interessante aqui salientar os projectos e estudos visando a ligação ferroviária do novo porto à cidade do Porto. Com efeito, e ainda na sequência dos desejos de manutenção do protagonismo do Douro, durante várias décadas prevaleceu a ideia de que tal ligação se deveria fazer através de um ramal que ligaria Leixões à Alfândega do Porto, percorrendo a margem direita do douro e, depois da Foz, ao longo da orla marítima. Entre os pioneiros dessa ideia encontramos o projecto de William Freebody, de 1854, que fazia assentar tal linha em estacaria sobre as praias. Hoje daria uma interessante linha turística, mas a sua aplicação prática era mais do que discutível face à habitual agitação do mar e das vagas alterosas que tão frequentemente varrem estas praias!
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Pormenor de Plan denoting course of the proposed Line of Tram-way (planta da proposta de uma linha férrea ligando a cidade do Porto a Leixões, ao longo da orla marítima e da Foz do Douro), incluída no "Relatório de William Freebody". Londres, 1854. Arquivo da APDL. |
Ainda no início do século XX a Associação dos Comerciantes do Porto defende a ideia do ramal da Alfândega que é, de resto, contemplada no projecto dos Engenheiros Adolpho Loureiro e Santos Viegas de 1907 e que servirá de guia a todo o processo de expansão do porto ao longo do século. Neste projecto, porém, aparece já razoavelmente bem desenvolvida a ideia que acabaria, após muitas dúvidas e contradições, por ser efectivamente implementada: a "Linha da Cintura", ligando Leixões à estação de Contumil no Porto, com passagem por Leça do Balio e S. Mamede de Infesta. Com tantas dúvidas e hesitações a inauguração oficial acaba por se realizar apenas a 17 de Setembro de 1938!
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Projectos de ligações ferroviárias entre o Porto e o porto comercial de Leixões. Desenho nº1 do "Projecto dos engenheiros A. Loureiro e Santos Viegas - variante nº2", 1907. Arquivo da APDL. |
Ou a maior obra de engenharia em Portugal no século XIX.
« Não se doma facilmente o oceano, não se modifica, sem ter que vencer grandes dificuldades, a obra espontânea da natureza.
Mas a ciência, a engenharia hidráulica, confiada nos seus poderosos recursos, ia encetar a luta com o oceano, e estava certa de vencê-lo, não sem violentas refregas e frequentes conflitos com tão valoroso adversário.
Por sua parte, o mar revirava o dente à hidráulica, procurava reaver o terreno que a ciência lhe conquistava, e, apesar de ficar vencido na luta, ainda não está resignado com a derrota, ainda de vez em quando, como aconteceu o ano passado, se arremessa em fúria contra o porto de Leixões para desfazê-lo. »
Alberto Pimentel, O Porto de Leixões …, 1893
Reunidas há séculos as condições naturais e a vontade dos homens é, pois, só em 1883 tomada finalmente a decisão política visando a construção de um porto de abrigo artificial em Leixões.
Muitos factores concorreram, como vimos nas últimas linhas, para que apenas no último quartel do século XIX este empreendimento se libertasse das teias que o enredavam e impediam a sua concretização. Mas, não podemos esquecer igualmente o contexto cultural e mental da época. Com efeito, o final de Oitocentos é caracterizado por uma fé cega dos Homens na ciência e na tecnologia. O deslumbramento com as inovações tecnológicas e as conquistas científicas levam o Homem a aspirar e acreditar num futuro próximo radioso, no qual a técnica encontraria soluções para todos os males que então o afligiam. Nada, incluindo as forças naturais, poderiam impedir tal evolução … E não obstante alguns sinais contrários da Natureza, que alguns não deixaram de interpretar como avisos divinos, de que o caso mais paradigmático foi o célebre naufrágio do «Titanic», seriam os próprios desígnios do Homem a abalar, com a Guerra Mundial de 1914-18, a crença na tecnologia. Afinal esta revestia-se, igualmente, de facetas bem perversas que, mais do que resolver os problemas do Homem, antes os agravava.
Mas em 1883, quando é dada luz verde para o arranque da construção do porto de Leixões, estávamos no auge da crença na tecnologia e no desenvolvimento industrial. O contexto nacional e internacional não podia deixar de ser, deste ponto de vista, o mais vantajoso possível para Leixões. No plano interno vivia-se o fontismo, período marcado pelo grande desenvolvimento das vias de comunicação, nomeadamente ferroviárias, e pelo alicerçar de uma política de incremento industrial. E, lá de fora, chegavam os ecos de outras gigantescas intervenções humanas de domínio sobre a Natureza com alguns paralelos a Leixões. Caso de embates triunfantes contra a fúria dos mares, como os travados pelos holandeses na construção dos seus diques, ou de hercúleas obras de engenharia de impacto mundial na navegação, como a abertura do Canal do Suez, ligando o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho, entre 1859 e 1869, ou a edificação do Canal do Panamá, permitindo a ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico, que iniciada em 1881 se prolongaria até 1914.
Estavam pois, finalmente, reunidas as condições para se iniciar a construção do Porto de Leixões e, ainda em 1883, por decreto de 23 de Outubro, era aberto um concurso internacional. Na sequência deste é lavrado, logo em Fevereiro do ano seguinte, o contrato com os empreiteiros franceses «Dauderni et Duparchy» que haviam vencido o concurso (em boa verdade haviam sido os únicos a concorrer). Valor da adjudicação: 4.489.000$00 (reis). Durante o período da construção ocorreria a morte de Dauderni, passando a empreitada para o nome de «Duparchy e Bartissol», o que não colocou em causa os prazos previstos: entrega provisória em 1892 e definitiva em 1895.
As obras de construção do Porto de Leixões iniciaram-se em 13 de Julho de 1884 e os trabalhos foram dirigidos pelo engenheiro francês Wiriot, sob a fiscalização do governo português que, para tal, nomeou o Engº Nogueira Soares, autor do projecto. Projecto que, fundamentalmente consistia na construção de dois extensos paredões ou molhes (o do lado Norte com 1.579 metros e o do lado Sul com 1.147), que enraizados nas praias adjacentes à foz do Rio Leça, formavam uma enseada com cerca de 95 hectares, com fundos entre 7 e 16 metros de profundidade. Além dos paredões foi construído, igualmente, um quebra-mar que, elevando-se apenas um metro acima do zero hidrográfico, prolongava em mais algumas centenas de metros o molhe norte. Terminava este esporão numa plataforma onde emergia um farolim.
O assentamento dos molhes fez-se, preferencialmente, sobre os diversos rochedos que, ao largo, já constituíam o porto de abrigo natural: os leixões, donde resultou a designação do porto. E, para a construção dos molhes, foi utilizado o granito de pedreiras próximas, a mais importante das quais foi a de S.Gens (Custóias) que se viu ligada a Leixões por uma linha de caminho de ferro, com cerca de sete quilómetros de extensão, construída expressamente para esse fim. Chegadas as pedras aos estaleiros e oficinas, montados em Matosinhos e Leça da Palmeira, estas eram então trabalhadas e conglomeradas de forma a darem origem a enormes blocos graníticos que chegavam a atingir as 50 toneladas.
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) Estaleiro de construção dos blocos artificiais do molhe Norte Foto: Emílio Biel |
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) Estaleiro de construção dos blocos artificiais do molhe Sul Foto: Emílio Biel |
Um dos principais problemas que se colocava à construção dos molhes era exactamente a forma como se procederia para erguer e posteriormente depositar no local desejado os pesadíssimos blocos graníticos.
Para resolver esta questão a «Dauderni & Duparchy» encomendou às famosas oficinas francesas «Fives», em Lille, dois gigantescos e poderosos guindastes movidos a vapor que se deslocavam, igualmente, sobre carris. Guindastes que, pelo seu aspecto colossal, de imediato foram baptizados por titãs.
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) |
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) Estaleiro dos blocos artificiais do molhe Norte com o Titan em montagem. 1885. Foto: Emílio Biel |
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) Rochedos de Leixões e extremidades dos dois molhes. Foto: Emílio Biel |
Hoje estes gigantescos guindastes permanecem e resistem sobre os molhes que construíram, quais duas titânicas estátuas erigidas à memória dos tempos pioneiros da construção do porto. A importância crucial que possuíram no contexto da edificação desta estrutura portuária, a sua imponência e força, e o valor simbólico que, ao longo do século, criaram em torno de si, merecem-nos uma atenção mais demorada.
Montados em Leixões, os titãs, dirigidos durante os primeiros anos exclusivamente por um técnico francês, de seu nome Lecrit, revelaram-se de facto como peças fundamentais na construção do porto. Paulatinamente, bloco após bloco, graças à sua acção, os dois molhes foram avançando mar adentro. Movidos a vapor (ainda hoje é possível descortinar no seu topo a «Casa das Máquinas», com as respectivas caldeiras), os titãs foram, efectivamente, utilizados para a construção do próprio porto não se tratando, ao contrário do que muita gente pensa, de guindastes para carga e descarga, pese embora tenham posteriormente desempenhado também essas funções (o do molhe sul pelo menos até aos anos sessenta do século XX).
Posteriormente à edificação dos molhes os titãs continuaram a ser utilizados para reparações nos paredões, em resultado de danos provocados pela acção tempestuosa do mar. De resto, um dos titãs foi, também ele, protagonista de um fortíssimo temporal ocorrido na noite de 22 para 23 de Dezembro de 1892. Para a memória do porto fica então a queda ao mar do colosso do molhe norte. Só mais de três anos depois, em Abril de 1896, após muitos estudos e esforços, se conseguiria recuperar aquele titã do fundo marinho, com o auxílio de potentes macacos mecânicos assentes sobre barcaças. Rapidamente recuperado, o gigantesco guindastes retomou a sua actividade.
Independentemente da sua importância e significado para Leixões e para toda a região, os titãs têm hoje uma importância acrescida pelo seu valor como testemunhas privilegiadas da era industrial e da arquitectura/maquinaria do ferro. E são tanto mais importantes quanto o facto de, aparentemente, se tratarem de exemplares únicos no mundo. Porque, se é verdade que os dois titãs tiveram outros irmãos, não é menos verdade que, nos outros casos, concluídas as construções portuárias, estes gigantes de ferro foram desmantelados. E, quando isso não aconteceu, nomeadamente na Europa, a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais encarregaram-se de o fazer tendo em conta que, desde muito cedo, os portos marítimos foram alvos prioritários de bombardeamento.
Conhecemos e sabemos da existência de mais titãs, como o caso dos de Glasgow (Escócia), ou de outros na Argélia, na Nova Zelândia e em alguns portos sul-americanos. São, no entanto, de dimensões e potência inferiores, incapazes de erguer à força do vapor e da resistência do ferro, as 50 toneladas que os titãs de Leixões levantavam. Assim, a importância patrimonial destes guindastes ultrapassa já as nossas fronteiras, justificando-se o facto de nos últimos anos por várias vezes se ter aventado a hipótese da sua classificação mundial, à semelhança da Ponte D. Maria, como International Mechanical Engineering Historic Landmark.
Mas, voltemos à nossa história e à construção do porto.
A auxiliar desde cedo os titãs vamos encontrar um outro mecanismo interessante: o aparelho para suspender blocos. Era este mecanismo, igualmente movido a vapor, que transportava, um a um e através de carris, os blocos desde os estaleiros montados em terra até aos vagões que se deslocavam posteriormente para junto dos titãs, na sua avançada decidida sobre o mar.
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) Grua utilizada para erguer e transportar sobre carris os blocos artificiais de 50 toneladas, junto ao Senhor do Padrão. Foto: Emílio Biel |
Ainda relativamente aos materiais de construção dever-se-á referir que, embora o cimento utilizado fosse fornecido pela Société des Ciments Françaises, de Boulogne-sur-Mer, a areia foi recolhida em praias localizadas nas proximidades – também elas ligadas às obras do porto por carris que conduziam os vagões puxados por locomotivas – e, a pozolana utilizada na composição do cimento era proveniente de S. Miguel (Açores).
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) Pontão em madeira para transporte de areia para o molhe Norte. Foto: Emílio Biel |
A construção do porto artificial de Leixões, que muitos classificam como a maior obra de engenharia executada em Portugal no século XIX, foi com efeito um acontecimento nacional. Ela era a materialização e aplicação, do nosso país, das inegáveis vantagens do Progresso (leia-se da Técnica e da Ciência). Motivo de primeira página dos jornais da época, enviados especiais e correspondentes relatavam o avanço das obras. E até a família real, em peso, se desloca em Setembro de 1887 para visitar as pedreiras de S.Gens e as obras em Leixões. Repetindo, afinal, o que já faziam milhares de portuenses e de nortenhos em geral nos seus fins-de-semana: deslocarem-se até Matosinhos e Leça da Palmeira para assistir ao avanço das obras.
O facto de um grande número dos implicados na revolta republicana ocorrida no Porto em 31 de Janeiro de 1892 ter sido aprisionado e julgado a bordo de navios de guerra fundeados em Leixões, atraiu ainda mais curiosos ao porto em construção e contribuiu decisivamente para a sua fama e uma maior divulgação, mesmo no estrangeiro(4). Por essa altura, aos fins-de-semana, o exército vê-se obrigado a reforçar os efectivos policiais e militares em Matosinhos e Leça da Palmeira. Narram os jornais da época: «Nos molhes do porto de Leixões está uma força de cavallaria para evitar a agglomeração do povo que por ali transita para ver os presos».
«N'estes ultimos dias o movimento de povo, pelas ruas de Mattosinhos-Leça, tem sido consideravel, calculando-se que 30.000 pessoas teem ido a Leixões para presenciarem o triste espectaculo».
«Nos carros americanos nota-se extraordinario movimento de passageiros».
«Os barqueiros têm feito excellente negocio, estipulando os preços das passagens, conforme a concorrencia do povo». (5)
Embora os prazos de construção tenham sido respeitados, a edificação dos molhes e do porto contou com muitas adversidades. Algumas das quais pagas com o sacrifício de vidas humanas. Já não eram, no entanto, os Homens que colocavam entraves ao avanço do projecto. Desta feita, fosse reacção da Natureza ou vontade do Demo, a verdade é que repetidas vezes o mar se rebelou contra a construção daqueles. Caso dos violentos temporais de 1887, 1888, 1892, 1896, 1897 e 1899. Destes, foi particularmente nefasto o da noite de 23 para 24 de Dezembro de 1892, destruindo uma parte significativa do parapeito e calçada do molhe Norte.
Mas as forças naturais, que alguns terão interpretado como demoníacas, foram vergadas. Ainda estávamos longe da data definitiva de entrega da obra – 16 de Fevereiro de 1895 – e já, a 9 de Novembro de 1886, entrava em Leixões o primeiro vapor. Nos oito anos seguintes, antes ainda da conclusão oficial da empreitada, entrariam 2.308 navios e seriam embarcados 30.275 passageiros!
Estavam mais do que provadas as potencialidades de Leixões como um grande porto. A ideia de um mero porto de abrigo estava abandonada, ainda a obra não se encontrava concluída…
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Construção do Porto de Leixões (1884-1892) Pontão em madeira para transporte de areia para o molhe Norte. Foto: Emílio Biel |
Da evolução do Porto comercial.
Ou a história de um Porto que entrou terra adentro.
« Em meados dos anos setenta começaram a mudar de forma radical os parceiros do comércio externo português, e por isso as vias utilizadas. Voltada a página do império, do sonho autárcico e do isolamento, as trocas reorientaram-se para a Europa continental onde se acelerava o desenvolvimento do tráfego TIR ( .. ) restringindo a função portuária às matérias-primas mais pesadas e as viagens mais longínquas. »
François Guichard, O Porto no século XX, 1994.
Em Fevereiro de 1895 estavam dados por concluídos os trabalhos da construção do porto de abrigo. Era no entanto evidente a utilidade e necessidade de o transformar num verdadeiro porto comercial. O número de navios que, como vimos, ainda durante a sua construção se socorreu de Leixões, cresce de uma forma esmagadora desde então. Os 409 navios entrados no porto em 1893 ascenderiam, dez anos depois, a 665. Duas décadas mais tarde, em 1913, o seu número mais do que duplicara (876 navios). E em 1926 o Douro já só movimentava 22% do tráfego do conjunto portuário(6).
Não deixa, contudo, de ser marcante o apego resistente, quase teimoso, da cidade do Porto aos seus antigos ancoradouros do Douro. Não obstante a construção em finais do século XIX do porto de abrigo de Leixões e a sua posterior adaptação a porto comercial, e fazendo por esquecer os naufrágios que continuavam a ocorrer na barra, como o do vapor alemão «Dieister» em 3 de Fevereiro de 1929, no qual pereceu toda a sua tripulação constituída por 24 homens, o Douro mantinha ainda, em 1931, uma actividade significativa, magistralmente registada por Manoel de Oliveira no seu primeiro filme: Douro, faina fluvial.
Seriam no entanto os Homens, ou a Natureza pela mão destes, que a partir dos finais dos anos quarenta do século XX condenariam a navegabilidade na foz do Douro. Na origem de tal condição esteve a construção das barragens de aproveitamento hidroeléctrico do rio que, evitando as repetidas e por vezes gigantescas cheias, contribuiu decisivamente para a diminuição da limpeza natural da corrente e para o assoreamento do Cabedelo. E a tonelagem e calado dos navios, em contrapartida, não paravam de crescer...
O Douro, como porto comercial, desapareceria durante as duas décadas seguintes. E até embarcações características, como os barcos rabelos e os rabões carvoeiros, são transformados em elementos turísticos e decorativos.
Produtos tradicionais ligados desde há séculos ao rio, como o Vinho do Porto, passam também eles a ser exportados por Leixões ou por outros meios. Em l5 de Março de 1963, o navio «Silver Valley» é o intérprete do último grande naufrágio ocorrido na barra. Em 1971 não se regista nenhum movimento no Cais da Estiva. O de Gaia não lhe sobreviverá muito mais. E, em 1976, o rio já não representava mais do que 2% do tráfego portuário do Douro-Leixões(7). Hoje, uma residual actividade ligada à descarga de cimento no depósito da Arrábida é a excepção que confirma a regra.
Paralelamente, a história de Leixões é caracterizada, durante este período, por um ritmo impressionante de construções e inovações. Como que, no discorrer do século XX, procurasse recuperar da demora que lhe haviam imposto. Uma autêntica luta contra o tempo que, se em muitos casos ainda surtiu efeito, em muitos outros revelou-se ser já bastante tardia...
Mas nem sempre tal preocupação foi evidente. Caso paradigmático foi o do início da adaptação do porto de abrigo a porto comercial. Com efeito, se é verdade que quando o primeiro se encontra concluído, em l895, era já pacífica e desejada a evolução para o estádio seguinte, ter-se-ia no entanto que esperar pela República para que tal plano se concretizasse. Data, com efeito, de 1912 o projecto do Eng. Henrique Carvalho de Assunção visando tal desiderato. E seria necessário esperar por 1914 para que os trabalhos se iniciassem. Pelo meio ficava a aprovação, em 23 de Abril de 1913, de uma lei que previa a transformação de Leixões em porto comercial e a criação de um organismo que passaria a gerir a construção e exploração desta estrutura portuária: a Junta Autónoma das Obras Marítimas do Porto do Douro Leixões. É esta Junta Autónoma, na gênese da actual APDL - Administração dos Portos do Douro e Leixões, que um ano depois contrai um empréstimo à Caixa Geral de Depósitos com o objectivo de dar início às obras. Valor do empréstimo: mil contos.
Os trabalhos consistiram na adaptação, no molhe sul, de um cais acostável, com cerca de 400 metros de comprimento que permitia a sua utilização por navios que podiam atingir até 23 pés de profundidade.
Embora fosse fundamental e não se revestisse de um grau de complexidade muito significativo, se comparado com a edificação dos molhes pouco tempo antes, a verdade é que a construção do cais se arrastaria por muitos anos. A 1ª Guerra Mundial e a falta de recursos financeiros explicam que a obra tivesse sido interrompida de 1916 a 1921. Mesmo assim, só seria dada por concluída em 1931. Era já, então, manifestamente insuficiente, além de que, quando a ondulação aumentava de intensidade, as embarcações tinham, urgentemente, de desatracar...
Havia pois que encontrar uma rápida solução. E ela surgiu. Mas a estratégia agora era outra. O porto já não era conquistado ao mar, mas entrava terra adentro, abrindo-se no próprio estuário do Leça... Desapareciam assim as velhas e seculares margens de Matosinhos e Leça da Palmeira.
Apenas dois anos depois da conclusão do cais acostável no molhe sul era, em 1932, iniciada a construção da doca nº 1, concluída oito anos depois e solenemente inaugurada em 4 de Julho de 1940 com a entrada do navio da marinha de guerra «Bartolomeu Dias». Durante este período foi iniciada também a construção, na entrada do porto, de um extenso quebra-mar. A empresa responsável por tal intervenção foi a «Anglo-Dutch Engineering and Harbour Works Cº Ltd» enquanto a «Sociedad Metroplitana de Construccion, de Barcelona» ficou com a empreitada da construção da nova doca.
Mas não pense o leitor que a abertura da doca nº1 foi um caso raro de rápida idealização e edificação. A verdade é que a ideia de aproveitar o vale do rio para prolongamento do complexo portuário surgira já pela primeira vez em 1893 quando tal hipótese é equacionada pela comissão nomeada pelo governo para estudar a adaptação de Leixões a porto comercial, liderada pelo engenheiro João Thomaz da Costa e João José Pereira Dinis. Quatorze anos depois, em 1907, surge um notável projecto, da autoria dos engenheiros Adolpho Loureiro e Santos Viegas, que desenvolve amplamente a ideia de localizar todo o conjunto das docas no vale e que, com ligeiras alterações, acabará por servir de projecto-guia a todo o processo de expansão portuário do século XX. Mas, apesar de datado de 1907, seria necessário esperar por 1940 para que a doca nº1, com os seus 550 metros de comprimento por 175 de largura, com dois cais acostáveis num total de mil metros, fosse inaugurada.
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«Porto de Leixões. Planta Geral das obras de melhoramento e de construcção do Porto Comercial», in Adolpho Loureiro e Santos Viegas, Porto de Leixões. Projecto do melhoramento …, Lisboa, 1908. |
Os números são elucidativos quanto ao que esta nova doca representou para o crescimento do porto: as 340 mil toneladas que movimentou em 1941 ascenderam rapidamente a 700 mil em 1949 e a 900 mil em 1959.
Este processo de expansão impulsionou um programa audacioso do Eng. Henrique Schrek que, com uma rara visão, previu a evolução do tráfego marítimo e propôs, em 1955, uma ampliação das estruturas portuárias ao longo do vale do Leça. Nasceria assim a Doca nº 2, programada para ocupar uma área de cerca de 500 mil metros quadrados e cujas obras, iniciadas em 1956, se prolongariam até meados da década de '70. Durante esse período de tempo, no entanto, a fisionomia do porto e da cidade iria ser alterada, significativamente. Com efeito Henrique Schreck, prevendo também o desenvolvimento da crescente articulação do tráfego portuário com o rodoviário, prestou particular atenção às áreas envolventes do porto, nomeadamente do ponto de vista das acessibilidades. Assim, além dos canais de acesso e ligação à doca, e dos longos cais de acostagem, multiplicar-se-iam os armazéns, as amplas avenidas circunstantes, os viadutos, pontes... Símbolo deste processo é a ponte móvel que hoje se localiza entre as docas nº 1 e nº 2, ligando Matosinhos a Leça da Palmeira. Baseada num ante-projecto dos Engenheiros Correia de Araújo e Campos Matos, foi construída pela empresa L. Dargent e aberta ao trânsito em 1959.
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Ampliação do Porto Comercial de Leixões. Plano Geral (esc. 1:5000 no original). Engº Henrique Schreck, 1955. Arquivo da APDL |
Mas o porto não parava de crescer. Nos finais dos anos sessenta surge o terminal para petroleiros e é alteado o quebra-mar, até aí submerso; de 1974 a 1979 é construído um terminal para contentores, tendo sido concluído, já na década de '90 um segundo terminal deste tipo (doca nº 3); entre 1974 e 1983 construíram-se mais 503 metros de cais na margem direita (doca nº 4); em finais dos anos '80 é ampliado o quebra-mar; e na primeira metade da década de '90 é construída uma nova marina para embarcações desportivas e de recreio. Datam, no entanto, de 1965 a l968 as obras de construção de uma das mais queridas estruturas do Porto de Leixões, desde sempre desejada pela população da região: um porto de pescado.
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Evolução esquemática do complexo portuário de Leixões. |
O desenvolvimento dos transportes aéreos e rodoviários e as profundas transformações socio-económicas motivadas pela «Crise do Petróleo» no início da década de '70 e pelo «25 de Abril» de 1974 colocaram novos e profundos desafios ao Porto de Leixões. O fim dos mercados coloniais até aí preponderantes. As novas realidades impostas pelo processo de integração europeia. O profundo desenvolvimento técnico e tecnológico dos últimos anos. Tudo isto obrigou a novas respostas e a um acentuado dinamismo que muitos pensariam ser impossível ao já centenário porto. Prova acabada de que não há, neste caso como em todos os outros, um fim da História. Esta continua a fazer-se diariamente. Mesmo quando se trata de uma estrutura que tem na sua base um conjunto de velhos rochedos que, desde há séculos, os homens se habituaram a ver como porto seguro.
(1) – Martins 1976, 20-21
(2) – cit. in Marçal 1965, 119
(3) – idem, 115
(4) – Cleto 1991
(5) – O Monitor. Matosinhos. 226, 8 de Fevereiro de 1891, p.2
(6) – Guichard 1994, 553
(7) – idem
Ficha Técnica
In "Porto de Leixões"
Fotografias: Domingos Alvão e Emílio Biel
Texto: Joel Cleto
Direcção Gráfica: Armando Alves
Edição: Administração dos Portos do Douro e Leixões, 1998